A quitanda virtual ‘No Move’ era a única. Os trabalhadores do mundo compravam ali todo o açúcar e os narcóticos que precisavam, sem sair dos seus apartamentos. A parte da empresa que funcionava com humanos estava preenchida com uma classe de gente que, por falta de visto para ficar no País dos Karas, rendiam como os escravos do tempo das pirâmides.
Esses lúmpens sem pátria terminavam custando menos que os robôs e, como estavam acostumados à miséria, aguentavam o sobre trabalho sem reclamar, como se tivessem músculos na alma. Durante dezesseis horas por dia, sem descanso, eles levavam os produtos de caminhões e aviões às infinitas gôndolas do depósito e, das estantes, enviavam-nos depois para o mundo.
Os psicólogos de recursos humanos da companhia usavam uma técnica de motivação chamada ‘espírito de cockpit’. Durante o serviço, o empregado vivia como uma equipe de Fórmula 1 no meio de uma corrida. Todo tempo era medido, cada décima de segundo valia. Assim, gastavam em alimento e hidratação os segundos necessários para engolir duas pílulas e deviam tomar purgantes à noite, em casa, para se livrar de manhã e chegar limpos ao serviço.
Os lúmpens cumpriam porque, além de ter medo, tinham sido convencidos, de tanto repeteco, que vivíamos numa época muito competitiva com enormes desafios e que, por isso, nosso corpo não podia interferir no espírito da empresa. Quem quisesse triunfar devia se sacrificar.
Os lúmpens, com medo de tudo perder, aferravam-se a essas palavras que os encadeavam como à última boia do rio da vida, ainda que soubessem que seriam demitidos antes dos 35 anos. A essa idade passavam a sofrer brotes psicóticos ou a cair mortos no meio dos colegas, com frequência alarmante, e isso perturbava o ambiente de trabalho.
Um dia, a intranet da companhia informou que no dia tal, a tal hora, o serviço seria interrompido por dez minutos. Isso não acontecia havia 50 anos. Os trabalhadores sentiram pânico, para eles, qualquer mudança no ritmo soporífero das suas vidas era motivo de desesperação. Não queriam voltar para o Cone Sul, sem açúcar e narcóticos.
Mas logo souberam que a interrupção se devia a um acontecimento histórico da companhia e o alívio fez com que sentissem um raro instante de felicidade. Nesse dia, Mr. Pennyhead, aquele rosto que viam na gigantografia do hall central da No Move todas as manhãs, iria para o espaço.
Chegado o momento, tocou a sirene e dezenas de milhares de trabalhadores se dirigiram ao telão mais próximo do seu local de serviço. Viram que Mr. Pennyhead -um dos raros vampiros que dava as caras nas telas- respondia sorridente as perguntas complacentes de um caguete jornalístico de renome, subia uma longa escada, saudava o comandante da nave e embarcava. Depois, a nave subia, chegava no topo, via-se que Mr. Pennyhead boiava com o comandante como em um parque de diversões, descia, coletiva de imprensa e, no final, a cifra gasta pelo vampiro nesses poucos minutos.
Em três minutos o sistema voltou ao normal. Os psicólogos estavam preocupados porque era a primeira interrupção da história, quase um sacrilégio. Mas também não se podia negar que a façanha de Mr. Pennyhead marcava um antes de um depois para a vida da companhia.
Os profissionais da conduta analisaram as conversações e os intercâmbios de mensagens privadas e descobriram com alívio que a conclusão da maioria dos lúmpens era que Mr. Pennyhead deveria ser um dos homens mais hábeis e inteligentes do mundo para poder jogar tanto dinheiro fora. Não faltaram, é claro, os poucos pessimistas de sempre que achavam que Mr. Pennyhead era um cínico que explorava escravos como um romeno para gastar em experiências banais e efêmeras. Mas bastou com demitir uma dúzia deles para neutralizar sua influência.
O coral de caguetes jornalísticos, da sua parte, encheria o mundo de admiração por Mr. Pennyhead. Era o primeiro vampiro que chegava ao espaço, o que importava se o dinheiro era rapinado. Era um triunfo do empreendedorismo individual, repetiam.
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