João tinha a pressão arterial baixa, por isso tomava conta da cozinha. A partir do dia 20 ou 25 acabava a comida, havia que sair a mendigar e era melhor que essa tarefa ficasse nas mãos dele. Horminda tinha picos de tensão e não podia se expor à humilhação de rogar por pão e ser desprezada. Por isso, ia João que, com brios de humildade, aguentava a negativa dos meritocratas porque sabia que, cedo ou tarde, chegaria à porta onde uma mão generosa lhe daria um resto de alimento.
O normal era passar uma semana de fome ao mês, até que recebiam de novo. Contudo, nos tempos em que os vampiros neoliberais se afirmaram no poder mundial, os tempos se invertiram e o que se ganhava no trabalho apenas alcançava para alimentar à família uma semana.
Foi num desses meses de desespero universal que João saiu de casa, em direção à zona dos ricos e andou e andou vários dias sen conseguir mais do que meia banana. Sentou-se na sombra, comeu para recuperar a energia e seguiu em frente. Preferia morrer a retornar a casa com as mãos vazias.

Por Diego Delso, CC BY-SA 4.0
Assim, chegou numa pequena aldeia, na entrada deserto. Ali também não tinha comida, mas bebeu água e conversou com os locais. Um velho com barbas de profeta e sorriso largo pronunciou o nome Tuppalaguah. Era um povoado, a quatro horas de distância, entrando no deserto. Viviam ali as pessoas mais felizes do mundo e, portanto, as mais generosas. Tinha que andar umas quatro horas até se bater com uma pequena duna e atrás estava Tuppalaguah.
No caminho, João imaginou Tuppalaguah. Projetou um luxuoso palácio, como nos contos de fadas, e uma praça com uma fonte retangular interminável, círculos de grama, triângulos de flores e moças jovens vestidas com tule portando badeijas cheias de frutos. Quando chegou, contudo, encontrou gente de complexão simiesca, vestida com peles cruas de camelo e que morava em tendas sustentadas com ossos de diversas bestas. João atravessou o caminho entre as deploráveis moradias, seguido por um murmúrio de risadas que surgiam desde os buracos pretos que davam entrada as tendas. Chegou num espaço aberto e se deteve à espera de que algum desses seres primitivos se aproximasse. Sentia-se defraudado, como esperar generosidade de seres tão rudes, tão sujos? Seriam capazes de sentir piedade?
Uma mulher, talvez a líder do grupo, aproximou-se de João apoiando ao andar as mãos no chão como os primatas. João falou. Pouco a pouco foram chegando outros e a praça encheu. Quando João terminou de explicar-se, a mulher ordenou que alimentassem o forasteiro e lhe dessem comida.

Autor: Mcarrizosac
Anoitecia. João recebeu três quilos de arroz, dois litros de vinho e trinta caranguejos. Um bruxo amarrou os caranguejos no seu cinto, varreu o chão com uma folha de palmeira, cantou um salmo e disse, com esse tom críptico dos religiosos, que se o deserto se tornasse um labirinto, os caranguejos apontariam a saída.
Ao amanhecer, feliz com a carga que levava, João sentiu a obrigação de retribuir a generosidade desse povo e decidiu ser franco.
“Ao chegar, achei que não poderia esperar nada de um povo tão rude. Agora, superada essa primeira impressão, entendo por que Tuppalaguah é o povo mais feliz do mundo: porque só a generosidade faz as pessoas felizes etc."
Partiu e, a pouco de andar, o saco de arroz pesava como um bezerro. Além disso, os caranguejos amarrados na sua cintura puxavam para se enterrar na areia e funcionavam como pequenas âncoras que atrapalhavam o avanço.

Fonte: Piqsels
“Acompanhe o ritmo deles, sem render-se ao desespero”, tinha dito o bruxo, fechando os olhos como um sábio que não precisa demonstrar nada.
Para pensar com calma, João sentou e bebeu meia garrafa de vinho. Sentiu-se melhor. Escutou algo, virou-se; não viu nada, além da ladeira e o povoado de Tuppalaguah desde as alturas. Mas eram as mesmas risadas que ouvira ao chegar. Podia ser ele o motivo de zombaria? Perseguido por essa ideia, subiu o que restava da duna correndo, os caranguejos batendo na areia, até desaparecer no alto, para não ser mais visto por esses seres de aspecto pouco agradável.
Apareceu, na manhã seguinte, morto. Apagou, bêbado e extenuado, para deleite dos caranguejos. Seu corpo estava crivado de feridas da largura de uma unha, por onde se acabara de esvaziar a sua vida. Os ajudantes do bruxo pegaram o saco de arroz e os caranguejos e enterraram João ali mesmo, sem deixar vestígios.
Essa noite, em Tuppalaguah, todos beberam aguardente de mandacaru, relembraram a história do forasteiro dezenas vezes, desde mil pontos de vista diferentes, e riram até cair.
Mas uma vez, foram felizes como sempre.
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