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O Caminhar da Cultura Popular - Parte II

Foto do escritor: Professor BoscoProfessor Bosco

Continuação da matéria publicada na semana anterior:

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Néstor García Canclini (1997) mostra que o que está em choque, na hierarquia entre as culturas, são os capitais culturais. É somente no embate entre esses capitais culturais que uma cultura é colocada em uma posição secundária de subordinação em relação à outra. É, portanto, dentro dessa lógica de superioridade de um capital cultural sobre outro que, por exemplo, uma cultura escrita vale mais que a cultura oral ou que a arte vale mais que o artesanato.

No que se refere ao trânsito entre a cultura erudita e a cultura popular, existe um lugar de performance, que deve ser visto como o lugar da interface. Um entre-lugar, conforme ensina Homi Bhabha:

[...] Para esse fim, deveríamos lembrar que é o “inter” – o fio cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar – que carrega o fardo do significado da cultura. [...] E, ao explorar esse Terceiro Espaço, temos a possibilidade de evitar a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmo (BHABHA, 2007: p. 69).

Mesmo relacionando-se com as formas simbólicas e modos de vida de determinada sociedade, a divisão social das classes através da distinção do culto e inculto tornou-se predominante ao significado de cultura. Neste contexto, a cultura e as artes distinguiram-se em cultura erudita, voltada aos intelectuais e artistas da classe hegemônica, e a cultura popular, direcionada à classe trabalhadora, urbana e rural.

A cultura passa então a distinguir-se de forma qualitativa: enquanto a cultura de elite, ou erudita, passou a constituir-se por produções das chamadas “belas artes” e ser consumida por pessoas consideradas de “bom gosto”, com alto grau de escolaridade, reais consumidoras da arte; a cultura popular quando interpretada como produções do passado nacional, recebe o nome de folclore e é constituída por mitos e lendas, ritos populares, música e dança regional, artesanato, etc. A cultura popular, é tratada de forma descritiva, sem entendimento e valorização de seu processo histórico, significação (e ressignificação), traduz uma concepção de mundo que revela o senso comum, uma fragmentação da cultura hegemônica adaptada ao popular.

Esta distinção mostrou-se ainda na arte como diferença qualitativa, onde segundo observa Chaui (2006), a dita cultura de elite, para que se sobressaia, deprecia a cultura do povo: a arte popular é mais simples e menos complexa que a erudita; enquanto a arte popular tende a ser tradicionalista e repetitiva, a erudita tende a ser de vanguarda; na arte popular artista e público tende a não se separar, já na arte erudita é clara esta distinção; enquanto na arte popular a mensagem do artista é imediatamente compreendida por todos, a arte erudita é compreendida apenas para o seu “público-alvo” e estes, intelectuais, a interpretam para o restante do público.

Arantes (2008, p. 07), afirma que “cultura popular” está longe de ser um conceito bem definido pelas ciências humanas e especialmente pela Antropologia Social, disciplina que tem dedicado particular atenção ao estudo da “cultura”. São muitos os seus significados e bastante heterogêneos e variáveis os eventos que essa expressão recobre.

A cultura popular é uma forma de manifestação cultural intrinsecamente relacionada ao anônimo, ao coletivo, ao espontâneo, à tradição e à oralidade. De modo geral, podemos dizer que a cultura popular é “o conjunto de conhecimentos e práticas vivenciadas pelo povo, embora possam ser vividos e instrumentalizados pelas elites. Pense-se no candomblé, no carnaval, na feijoada, nos usos folclóricos, no jogo do bicho e na capoeira. (...) Cultura popular simplesmente [é] o que é espontâneo, livre de cânones e de leis, tais como danças, crenças, ditos tradicionais. (...) Tudo que acontece no país por tradição e que merece ser mantido e preservado imutável. (...) Tudo que é saber do povo, de produção anônima ou coletiva.” (VANNUCCHI, 1999, p. 98).

Para Luís da Câmara Cascudo, é possível interpretar a cultura popular como resultado da “sabedoria oral”, memória coletiva anteposta aos conhecimentos transmitidos pela ciência. Possuidora de “bases universais”, portadora de um “instinto de conservação para manter o patrimônio sem modificações sensíveis, uma vez assimilado,” (CASCUDO, 1983, p. 679).

Apesar desse instinto de conservação, a cultura popular é detentora de um caráter multidimensional e está aberta ao contato com o novo. O próprio Câmara Cascudo assegura ser a cultura, em grande parte, fruto da aculturação e da difusão cultural, já que nenhuma cultura poderia ser considerada imune à mistura. Para o autor, “não existe civilização original e isenta de interdependência” (CASCUDO, 1983).

A cultura popular é justamente resultado de todos esses resultados, fundidos pelos processos mais inexplicáveis ou claros, viajando através do mundo, obedientes aos apelos misteriosos que não mais podemos precisar. A cultura popular é o último índice de resistência e de conservação do nacional ante o universal que lhe é, entretanto, participante e perturbador (CASCUDO, 1983).

Para Cascudo (1983), na cultura popular existiria um “processo lento ou rápido de modificações, supressões, mutilações parciais no terreno material ou espiritual do coletivo sem que determine uma transformação anuladora das permanências características”. Leio como sendo estas “permanências características” o saber e o saber-fazer do povo que atribuem à cultura popular seu caráter de continuidade, funcionalidade e utilidade, que, por sua vez, a torna “mantenedora do estado normal do seu povo quando sentida viva, sempre uma fórmula de produção”. (CASCUDO, 1983, p. 40).

A cultura popular não é um mero suporte idealizador para a tradição, por estar muito além das representações estanques, segundo as quais ela ocorreria apenas no passado, na verdade, é o hoje vivido e expresso.

Através da cultura popular é possível um novo reinventar social e educacional por serem cercadas de conhecimentos, práticas, saberes, tecnologias, maneiras de pensar e de fazer, de viver e humanizar. Quando inseridos no contexto escolar, o experimentar dessas possibilidades tem no ensinar o momento de fazer com que os discentes se vejam, se percebam, experimentem e ressignifiquem os conhecimentos herdados em consonância com aqueles produzidos e disseminados na escola.


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