No século XIX, a cultura popular é transformada em objeto de estudo pela elite, em seu processo histórico de inclusão e de exclusão pela cultura dominante de seu meio intelectual. Fala-se aqui naquilo que Peter Burke, em seu livro Cultura Popular na Idade Moderna: Europa (1500-1800), chama de “Em busca da cultura popular”. Segundo o autor:
Foi no final do século XVIII e início do século XIX, quando a cultura popular tradicional estava justamente começando a desaparecer, que o “povo” (o folk) se converteu num tema de interesse para os intelectuais europeus. Os artesãos e camponeses decerto ficaram surpresos ao ver suas casas invadidas por homens e mulheres com roupas e pronúncias de classe média, que insistiam para que cantassem canções tradicionais ou contassem velhas estórias (BURKE, 2010, p. 26).
Burke, em “A descoberta do povo,” apresenta os pioneiros europeus na pesquisa folclórica, tais como Macpherson, Percy, W. Scott, os Grimm, Karadzic, Lönnrot, Goethe, Lessing, Herder e Almeida Garrett, em Portugal. O historiador britânico, depois de fornecer tal mapeamento dos etnógrafos e folcloristas pioneiros, argumenta que o surto do interesse pela cultura popular, no século XIX, se dá por razões: “[...] estéticas, intelectuais e políticas. [...]”, (2010: p. 33).
Intelectuais, porque, nos movimentos românticos do século XIX, era compromisso intelectual o nativismo e o primitivismo cultural, que depois se convertem nos nacionalismos. Estética, porque era preciso, pois, reagir à arte artificial, neoclássica, universal e iluminista, e voltar-se para uma tradição mais local e primitiva. Finalmente, política por conta dos problemas políticos em jogo: as guerras, invasões e dominação estrangeira dos impérios e os nacionalismos, que emergiam como reação à dominação estrangeira. Tais nacionalismos surgem, mostra Burke, como um projeto forjado pelos intelectuais e imposto ao povo.
De fato, no século XIX, vive-se a ascensão do nacionalismo em uma atmosfera político-cultural que dava ao passado das nações e às culturas tradicionais de seu povo um significado estratégico nas lutas políticas. “Depois de 1809, esse estudo do passado nacional assumiu significado mais político” (Burke 2010: p. 36). Além disso, como insiste Stuart Hall, tratava-se também do processo de reeducação do capital, em face às transformações históricas, as quais tinham no povo o mais renitente local de resistência:
O capital tinha interesse na cultura popular porque a constituição de uma nova ordem social em torno do capital exigia um processo mais ou menos contínuo, mesmo que intermitente, de reeducação no sentido mais amplo. E a tradição popular constituía um dos principais locais de resistência às maneiras pelas quais a “reforma” do povo era buscada (HALL, 2003: p. 247- 248).
Renato Ortiz, em seu livro Românticos e folcloristas: cultura popular (1992), ao fazer uma arqueologia do conceito de cultura popular, fixa também o século XIX como o momento em que a ideia de cultura popular teria sido inventada. O sociólogo brasileiro se debruça sobre três grupos, os antiquários, os românticos e os folcloristas, dando ênfase sobretudo aos românticos e aos folcloristas, para mostrar a importância deles na compreensão das classes subalternas, ao considerarem sua cultura como uma categoria de análise.
Despertando polêmicos debates entre os pesquisadores, a cultura popular se torna objeto de pesquisa para pensadores da cultura, sociólogos, historiadores, etnólogos, filósofos e cientistas sociais. Ortiz (1992) vê duas vertentes de posicionamentos entre eles. Uma, classista, para quem a cultura popular das classes subalternas é uma cultura própria, diferindo da cultura dominante da elite esclarecida. E outra vertente, mais abrangente e transcendendo ao conceito de classe, para quem popular é considerado como sinônimo de povo. Para essa última vertente, a cultura popular, sendo um reduto da essência nacional, estaria ligada à questão nacional e às discussões sobre a identidade nacional.
Burke, em sua reformulação do modelo de Redfield, observa, que existiram duas tradições, mas elas não deveriam ser vistas como se referindo simetricamente a dois grupos sociais: a grande tradição, relativa à elite; e a pequena tradição, relativa ao povo comum.
Para Burke, sempre houve forte interação entre elas, em seus encontros e confrontos, num processo complexo e dialético de aproximações, afastamentos, confrontações, apropriações, reapropriações e adaptações permanentes. Uma circularidade cultural intensa caracteriza a relação entre essas culturas, a popular e a erudita, e isso se dá de forma muito intensa particularmente no século XVI.
A questão é que, enquanto a elite culta, a minoria, pertencente às classes altas, participava das duas tradições, e se caracterizava por ser bicultural, anfíbia e bilíngue, considerando a cultura popular como uma segunda cultura, em sua função psicológica como uma cultura para diversão, além de servir também, o conhecimento dela, a cultura popular, para fins de dominação; segundo Burke, para o povo comum, a maioria iletrada, inculta, a cultura popular seria a única cultura, não participando, portanto, esse povo comum da grande tradição. Essa, segundo Burke, é a diferença cultural crucial a observar na Europa, nos inícios da Idade Moderna (2010: p. 36).
Além disso, Burke também chama a atenção para a variedade da cultura popular, que jamais deveria ser vista como um único conjunto uniforme, monolítico ou homogêneo. Antes pelo contrário, existiriam, segundo Burke, muitas culturas populares, formadas por uma variedade imensa de subculturas, algumas das quais poderiam mais apropriadamente ser chamadas de contraculturas, como ocorre entre os mendigos e os ladrões. Assim, existiriam as particularidades da subcultura popular dos sapateiros, dos cegos, dos andarilhos, dos mineiros, dos açougueiros, dos ferreiros, dos pastores, dos pedreiros, dos soldados, dos marinheiros, e também as particularidades da subcultura das mulheres.
A cultura das mulheres, por exemplo, convém notar, na medida em que “[...], a palavra escrita somava-se à lista dos itens culturais não partilhados por elas” (BURKE, 2010: p.83-84), havendo, portanto, muito mais homens letrados que mulheres letradas, é uma cultura mais ligada à memória. Isso também decorre de seu isolamento social. Excluídas das guildas, das irmandades, das tavernas, enfim, da vida social, as mulheres têm sua própria cultura, uma cultura mais conservadora. As mulheres seriam, pois, “[...] as guardiãs da tradição oral mais antiga” (2010: p. 84).
Como se vê, compreender as relações entre a cultura popular e a cultura dominante passa por ter sempre em mira toda essa discussão e passa igualmente por saber que “não existe uma cultura popular íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das relações de poder e de dominação culturais” (HALL, 2003: p. 238). Aqui está, segundo Stuart Hall, o ponto mais importante a reter na definição do conceito de “popular”, que deve ser acompanhado por uma compreensão semelhante, na definição do conceito de cultura.
Stuart Hall defende ainda que [...] o princípio estrutural do “popular” neste sentido são as tensões e oposições entre aquilo que pertence ao domínio central da elite ou da cultura dominante e à cultura da “periferia”. É essa oposição que constantemente estrutura o domínio da cultura na categoria do “popular” e do “não-popular”. [...] O princípio estruturador não consiste dos conteúdos de cada categoria – os quais, insisto, se alterarão de uma época a outra. Mas consiste das forças e relações que sustentam a distinção e a diferença; em linhas gerais, entre aquilo que, em qualquer época, conta como uma atividade ou forma cultural da elite e o que não conta. (HALL, 2003: p. 240).
Porém, embora as culturas populares sejam as culturas de grupos subalternos, produzindo-se em suas relações com a cultura dos grupos dominantes, não se deve, como ressalta Denys Cuche (1999), entendê-las como culturas dominadas no sentido de serem alienadas ou de estarem em posição de dominação permanentemente. O que ocorre é que os grupos sociais estão em relação de dominação e subordinação uns com os outros. As culturas populares não devem, assim, ser vistas como um espaço de manipulação, mas sim de conflito, uma vez que a contestação é uma de suas principais características, “[...] as culturas populares são culturas de contestação.” (CUCHE, 1999: p. 149).

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