
Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo
E surdo ao brado do universo inteiro...
De dúvidas cruéis prisioneiro,
Tomba por terra o pensamento altivo.
Dizem que o Cristo, o filho do Deus vivo,
A quem chamam também Deus verdadeiro,
Veio o mundo remir do cativeiro,
E eu vejo o mundo ainda tão cativo!
Se os reis são sempre os reis, se o povo ignavo
Não deixou de provar o duro freio
Da tirania, e da miséria o travo,
Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio,
Se o homem chora e continua escravo,
De que foi que Jesus salvar-nos veio?...
Tobias Barreto, além de poeta, foi um importante filósofo e jurista de sua época (1839-1889). Moveu correntes de ideias abolicionistas e mantinha-se contra o regime escravocrata que vingava. Integrou a Escola de Recife, um movimento filosófico pautado no Monismo europeu, que basicamente consiste em considerar que tudo, físico ou metafísico, provém de uma origem comum, a Mônada, raiz absoluta.
Logicamente esta corrente filosófica choca-se com diversas religiões e apresenta uma visão bastante diferenciada de uma suposta deidade, pois inclusive todas as "ideias de Deuses" dispostas pelas mais diversas civilizações, teriam origem à partir da Mônada. Imerso nesta visão bastante filosófica de uma divindade, Tobias entende que não há necessidade de uma religião, nem para contemplar, nem para pensar sobre o divino.
Mais do que a Jesus, que no poema aparenta ter desperdiçado seu sacrifício, os versos fazem uma crítica à instituição. É necessário vislumbrar um pouco o cenário político e social da época. O Sinédrio era o conselho supremo dos judeus, o Grande Tribunal, composto de sacerdotes, anciãos e escribas que julgava segundo e fazia valer as leis de "Deus" - aquele misógino, intolerante banhado a apedrejamento, olho por olho e dente por dente, do que hoje conhecemos como Antigo Testamento. O Sinédrio, aplicando as "Leis de Deus", explorava a população judaica financeiramente e, sob o estandarte medonho da ira de Deus, mantinha a todos sob controle.
Jesus, por outro lado, era inteiramente contra vincular o exercício da fé ao pecuniário de qualquer maneira e em qualquer instância, inclusive o dízimo, comia à mesa com mulheres e as tratava de igual (sim, era proibido na lei judaica que as mulheres comessem à mesa com os homens), ao invés do olho por olho, dar a outra face e a única sentença no imperativo que ele exprimiu foi: amai ao próximo como a ti mesmo. Ele exprimiu publicamente seu desgosto pelo Sinédrio e confronta diretamente os sacerdotes nas ruas de Jerusalém, quando da ocasião de se encontrarem. Vale lembrar que, poucos dias antes da crucificação, Jesus sobe ao templo de Jerusalém para orar e, ao encontrar ali um mercado enfurece-se, pois diz que os vendilhões transformaram o local sagrado em uma cova de ladrões, e quebra tudo.
O que há, de fato, é uma desavença filosófico-política entre Jesus e os Supremos Sacerdotes. Quando é dito em Coríntios que "ele morreu por nossos pecados" faz todo sentido, sim, os pecados deles, dos sacerdotes que o condenaram e corromperam a fé dos seus semelhantes, e todos os coniventes com a poeira de mentiras que cobre a verdadeira essência de Deus, o Amor. E ele ter salvo a todos nós, também faz sentido, em partes. Ele de fato entregou a chave, pois se seguíssemos sua única lei, não haveria necessidade de nenhuma outra.
Mas é bastante conveniente para uma instituição que se funda em sua morte ter ali um símbolo de máxima expiação, pois dentro da ideia de que estamos todos salvos, está a ideia de que tudo vai bem, mesmo que, como denuncia o poema, continuemos transbordando de injustiça, corrupção e afins. Sem contar que muitas, muitas, muitíssimas instituições religiosas usam o nome de Jesus pra cobrar o dízimo e o de Deus para amedrontar os fieis e mantê-los em rédea curta, justamente pelo que Jesus se posicionou contra e o levou a morte.
E isso me leva a concluir o Poetize-se desta semana voltando ao título do poema: Ignorabimus. É uma expressão latina que diz Ignoramus et ignorabimus (ignoramos e ignoraremos). Muito genialmente Tobias Barreto assim intitula seu poema abrangendo desde a ignorância dos reais motivos da crucificação, como do fato de ter-se ignorado por completo os ensinamentos e as ideias de Jesus, mesmo por muitos daqueles que evocam seu nome, e também pode se referir a Deus e a seus Anjos, que ignoram e continuarão a ignorar os templos daqueles que ignoraram as palavras do filho seu.
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