A corporação ‘Ás de Corações’ era dona de mais de 500 marcas; vendiam sapatilhas, repolho desidratado, cloroquina, cigarros etc. Faziam propagandas com donas de casa felizes e com bebês fofos. Tinham filiais nos principais continentes e agora abriam um inesperado escritório no pobre Cone Sul; mais precisamente no bairro Entulho, que era o mais densamente povoado de Bundanga.
Gugu era musculoso. Precisava de um salário para alugar um quarto e juntar-se com Maga que, agora, estava na outra fila de aspirantes a fazer parte da "As". Na prova, ela tiraria raiz quadrada de uma tacada, agruparia cubos, esferas e pirâmides e responderia que seu animal predileto era o golfinho, como esperavam os psicólogos. Gugu entraria, também, mas porque lutava boxe tailandês.
Ele foi nomeado diretor de segurança, com um pelotão de homens armados a seu cargo. A maioria conhecidos da academia. Passeavam o dia inteiro pelos jardins que circundavam o prédio da companhia e, como eram propensos a peitar os limites, às vezes bebiam e outras fumavam bigode de camelo e ficavam rindo de como os corpos se deformavam sob os efeitos da droga.
Enquanto isso, Maga e os outros operadores copiavam cifras e cifras nas casas adequadas do Excell.

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O software ‘Auschwitz’ era um programa de gestão administrativa como todos: media o tempo que o operário gastava em cafezinho, banheiro, conversas paralelas etc., mas , diferente dos outros, prometia um elevado grau de penetração psicológica, a partir da análise dos dados que recolhiam as câmaras e o teclado. O ‘Auschwitz’ lia o modo de humedecer os lábios, de cheirar os dedos, de se coçar; também a intensidade de cada um desses movimentos. Tudo isso era combinado com a temperatura na ponta dos dedos, o pulso e outras menudências e resultava um ‘mapa emotivo’, que podia ser de um indivíduo, de um grupo ou de todo o pessoal.
O ‘Auschwitz’ aproveitava inclusive as ausências. Quando duas pessoas desapareciam das suas telas nos mesmos horários, com certa frequência, o programa rastejava as câmaras de segurança à procura de um provável encontro. Uma vez determinado o encontro e sua frequência, os software media as condições dos operadores ao regresso ao trabalho: pulso acelerado e o rosto sorridente era amor; já pulso acelerado e o rosto amargo era trabalho. Amor e trabalho, como muito bem sabiam os psicólogos, eram incompatíveis na ética vampira.
Gugu e a Maga chegavam em casa -extenuada ela, com ressaca ele- e faziam muito o amor, algo comiam e dormiam quase nada. Como Gugu ganhava o dobro que os demais, o passar deles estava acima do esperado. Mas, no escritório, a pressão sobre Maga crescia. Os psicólogos aumentavam as horas de exposição ao Excell, vinte minutos por dia, e já apareciam as primeiras baixas por sobre trabalho e os primeiros brotes psicóticos.
Os guardas de Gugu, da sua parte, depois de meses de deambular bêbados pelos jardins, estavam ainda mais embrutecidos do que nos tempos da academia e, quando intervinham em um desses conflitos, reprimiam com violência inusitada os inocentes colegas de Maga. Mas o casal não levava problemas questões do escritório para casa. Tinham um objetivo: crescer na empresa e emigrar ao país dos karas.
Na medida em que os psicólogos aumentavam os tempos de exposição ao Excell, mais intenso era, na empresa, o desempenho de Gugu. E tanto ele como seus guardiães assumiam o papel de repressor com cada vez mais entusiasmo. Enquanto isso, Maga, em casa, ia virando zumbi, de olho aberto, mas dormida, batendo nas bordas dos móveis, confundindo o forno com a geladeira.

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Os psicólogos da "As de Corações" queriam saber até onde eram capazes de aguentar os operadores conesulinos das novas gerações. Quando chegaram nas 16 horas de serviço neto, a situação se tornou incontrlável e o teste foi finalizado. Como os estados de ânimo dentro da empresa não eram dos mais exemplares, vários mapas emotivos de conjunto feitos de hora em hora aconselharam proibir o ingresso e a saída de qualquer pessoa.
Passaram-se uns dias. Gugu e Maga nem se viram. Ele, sob o efeito do bigode de camelo, via todos os corpos deformados; ela não via mais nada. Ficava, como os outros, na frente do Excell, inventando cifras para poder seguir vivendo.
Como não podiam devolver esses trastes para a comunidade de Entulho, sem envolver a marca em um escândalo, distribuíram falsos mapas emotivos entre os guardiães, indicando prováveis conspirações, e montaram uma corrente de paranoia que terminaria no massacre dos operadores. Depois, os vermes parlamentares e os caguetes jornalísticos venderiam o incidente como revolta comunista sufocada.
Não se sabe se Gugu acabou matando Maga com suas mãos, mas isso pouco interessa. Só ficou registrado que ele foi fiel à companhia até o último momento e que arrumou um emprego de limpeza na academia da Sede Central, que se encontra na capital do país dos karas.
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