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As Feiras Vampiras

Foto do escritor: DiógenesDiógenes

Batata tinha sido operador de ônibus espacial durante vinte anos, fazendo a linha Cabo Kennedy-Plataforma NG-369. Estava aposentado pelo estatuto do astronauta e, após 87.660 horas encaixotado num cockpit um centímetro maior do que o contorno de seu corpo, tinha direito a uma pensão que lhe permitia comer salsichas todos os sábados, passar uma semana ao ano na montanha e ir à Feira do Trabalho a cada 4 de julho. Batata era uma figura bem lembrada no seu grêmio e respeitada no condomínio; tinha dois filhos esportistas e uma esposa gorda e saudável.

Ninguém esperava uma reação tão fora de lugar.


A Feira do Trabalho, era a ocasião em que os vampiros se faziam quase visíveis. Podiam ver-se suas silhuetas a trinta metros, atrás de um vidro antibalas esfumado, como paus pretos que andavam e dançavam, mas ninguém se interessava porque a Feira brindava espetáculos muito mais interessantes e música e bebida e todos se sentiam reis do mundo.

Batata, nessa noite, estava para lá de bem com a festa: as salsichas deliciosas, a esposa e os meninos eufóricos... Assistiram a competência entre os atletas olímpicos e os robôs da limpeza, o espetáculo da contadora sênior que calculava tão rapidamente como os mais sofisticados programas de administração, a tradicional corrida do coelho e a cenoura etc.

Não havia motivo para uma reação própria de um coração repleto de ressentimento.

Foto: Las Vegas


Os vampiros neoliberais tinham incutido, na memória dos cidadãos, a vergonha de sentir infelicidade. Era uma lei que se aprendia no jardim de infantes. Por essa razão, nunca ninguém emitia queixas por nada. E não era que estava proibido reclamar -a liberdade de expressão era uma das bases da ideologia vampira-, mas dava muita vergonha ser desordeiro e, além disso, a queixa não resolvia o problema e valia uma marca na ficha do descontente.

Mas Batata, nesse dia, se desequilibrou no espetáculo do operário que caia no poço. Um homem era obrigado a correr a velocidade variável por uma plataforma giratória e, a cada cinco minutos, o piso abria e a pessoa caia em diversas posições. Às vezes fraturava, ora o fémur, ora a bacia; às vezes, saia ileso. Era uma propaganda de ossos autógenos, última maravilha da tecnologia. Os ossos se regeneravam diante dos olhos do público e o corredor voltava à ativa em questão de minutos, uma e outra vez.

Os críticos dos vampiros escreveram em seus ignorados nichos, que Batata, que passou meia vida toda encaixotado e teria sido submetido a 57 dolorosos reordenamentos de vértebras e a seis deprimentes recuperações de infartes, identificou-se com a vítima, em lugar de sentir-se mais seguro com o novo avanço da tecnologia.

E isso era denunciava uma falha no sistema de comunicalção dos vampiros.


Desde a prisão, Batata deu a razão a esses críticos. Ele sempre tinha concordado com aquilo de que nas naves cada centímetro tinha um custo enorme e que, portanto, era lógico que ele encaixotasse seu corpo, doze horas diárias, durante vinte anos, para que a nave fosse mais leve. Mas, disse, quando viu que todos riam diante desse humano caindo repetidamente no buraco, surpreendeu-se ao ver que, do outro lado do espelho, pudessem formar-se imagens tão desoladoras. E falou o que falou.

Essa foi a verdade.

Mas os caguetes dos vampiros já davam ao caso Batata a versão definitiva. O que fazer com os espíritos fracos que não suportam viver na era da conquista? Podemos tolerar ‘cidadãos’ que com seu pessimismo ponham em perigo nosso espírito competitivo? Dez anos de prisão para Batata são suficientes?

A defesa de Batata tentou argumentar que o réu disse o que disse, mais levado pela surpresa do que pela raiva. Mas no final Batata iria preso, perderia todos seus direitos e sua mulher e filhos teriam que emigrar a uma nação pobre do Cone Sul, onder a vida fosse mais barata.

E, o pior de tudo, ainda hoje ninguém -nem Batata- lembra muito bem do que foi que ele disse ou fez, nesse 4 de julho. Todos coincidem, isso sim, em que se tratou de uma clara demonstração de falta de fé.

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