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Questão do coração

Foto do escritor: DiógenesDiógenes

Bundanga era uma nação pobre do Sul. Exportava camelos para os karas, que usavam os cílios do animal para fabricar a cola orgânica que recheava suas insuperáveis próteses. A criação dos animais era controlada por duas famílias. Possuíam laboratórios, onde encurtavam o período de gestação dos camelos, sempre um pouco mais, e esticavam seus cílios constantemente; e currais onde, numa atmosfera afogada em xixi e cocô, acontecia a gestação, alimentação e abatimento.

A cultura bundanguense girava em torno do camelo. A carne gordurosa das corcovas reinava nos churrascos e os olhos eram a base de um caldinho tradicional. Além disso, vestiam roupas de pele de camelo, apesar do calor, e usavam brincos de fios de bigode.

Pucho Caray trabalhava para a família Tompso desde os dez anos. Tinha limpado excremento, pingado colírio em olhos grandes como ovos e ajudado na parição das bestas, infinitas vezes. Aos vinte, era matador. Hoje, aos quarenta e sete anos, morava num vagão com paredes de plástico reforçado e espaço para uma sombrinha na frente, tinha dois filhos, esposa, sogra e meia dúzia de camelos que, no conjunto de vivendas Tompso IV, eram indício de boa posição.

Fonte: Pixabay


Naqueles dias, graças a ‘biobótica’, era possível trocar facilmente qualquer parte do corpo por uma prótese perfeita. Todos as estrelas já tinham trocado alguma coisa -desde pernas a pâncreas e desde orelhas a pulmões- e ostentavam com orgulho esse privilégio de ricos. A técnica funcionava para os pequenos artefatos ósseos que uniam o mindinho à mão e nas complexas redes que acoplavam uma medula artificial a um sistema nervoso natural. O mecanismo atuava sob uma camada de substância muscular e sob um revestimento de pele sintética que adquiria a cor do resto do corpo.

Quando o primogênito de Pucho Caray perdeu as pernas, três costelas e teve ferido o coração, os Tompso pagaram a reconstituição. Puchinho viajou ao país dos karas e voltou melhor que antes do acidente, no físico, e com a cabeça cheia das maravilhas do conforto e a ostentação.

Pucho foi agradecer ao patriarca e ajoelhou-se e curvou-se, até apoiar a testa no chão.

-Fiz botar em seu filho um coração de vampiro neoliberal -disse Tompso, mandando levantar-se-. Para ele enriquecer.

Pucho estava feliz, os anos chafurdados em merda de camelo, começavam a render frutos. Enquanto pedalava para casa, sonhou com uma casa nova, com um pequeno criadouro de bestas. Uma onda embriagadora adocicou sua visão do futuro. Por isso, quando Puchinho teve a ideia de abrir uma janela na cozinha para vender hamburguer de camelo, Pucho embarcou e remou. A mãe cozinharia, o segredo estava no molho, e a irmã, Hsarah, dançaria na porta fantasiada de camelinha.

Fonte: Hippopx


O negócio, como era de esperar, funcionou duas semanas e parou. Os vizinhos do Tompso IV, criados na necessidade, aprenderam em seguida a moer carne e fazer molho e dispensaram o Camel Food. Ao fechar o bimestre deviam quatro vezes o patrimônio líquido da família. Mas Puchinho, graças ao poder de convicção que lhe dava seu coração, manteve acessa a chama de esperança do pai por outros dois meses e terminaram devendo cinco vezes mais.

Tudo terminou mal, quando o doutor Tompso exigiu a virgem Hsarah em troca de 20% da dívida. A menina era menor de idade, mas como o empreendedorismo de Puchinho era zero vacilo, visitou um juiz subornável e comprou a emancipação jurídica da irmã. Quando já não restou o que tirar deles, os Tompso executaram o vagão e despejaram os Caray. Além disso, como o fracasso comercial de Puchinho demonstrava desdém para com a generosidade da família, a Tompso se viu obrigada a pedir a restituição do dinheiro das próteses.

O valor equivalia a meio milhão camelos.

Os Caray viveram como escravos por cinco gerações.

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