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Culpa e redenção

Foto do escritor: DiógenesDiógenes

Wilde era uma jovem promessa vampira, ainda que viesse do entretenimento: era dono do canal de streaming que o mundo inteiro assistia. Muitos, na classe vampira, ao mesmo tempo gostavam e desconfiavam dos executivos que vinham dessa área pela mesma razão: o inevitável contato com belíssimas estrelas.

Os vampiros focavam suas vidas na exclusividade: pagavam dezenas de milhões por uma noite em um lugar ao que quase ninguém pudesse aceder, reuniam-se em ilhas retiradas dos google maps às quais só eles tinham acesso, só admitiam em suas mansões membros da casta vampírica. Assim, acabavam reproduzindo-se entre eles, como uma nobreza do sangue, porque as probabilidades de que houvesse encontros de amor à primeira vista entre um vampiro e um membro da classe riquinha, da trabalhadora ou da ralé áspera, atingiam valores desprezíveis.

Assim, evitavam-se os amores impensados, que terminavam em uniões totalmente desprovidas de cálculo, dividindo as fortunas. Na cúpula vampira, acumular era o natural, dar era uma fraqueza do espírito e o egoísmo, uma virtude cavaleiresca. A humildade, a compaixão e o amor provocavam desconfiança, eram traços de hipocrisia.

Os vampiros eram atendidos por robôs em tudo. Como dizia a publicidade, os robôs não só aspiravam o pó, senão que também desinfetavam e produziam ventilação cruzada, mantendo sempre os ambientes livres de vírus e bactérias. Além disso, lavavam a louça sem jamais quebrar uma peça e cozinhavam qualquer receita da Internet. Isso, sem contar com que cada novo modelo que saia trazia uma nova função.

Wilde simpatizava com os críticos da extrema automatização da vida. Por essa razão, nas festas vampiras, era motivo de chacota. ‘Melancólico’, diziam, entre goles e gargalhadas. Humanista! Etc. Mas, como vinha do mundo do entretenimento, essas debilidades eram perdoadas. E além disso, os amigos de Wilde, no fundo, gostavam de jantar na sua casa, onde, como em um filme de época, havia mordomo, cozinheiro, jardineiro e mucamas, todos humanos.


Um dia chegou Liliana. Liliana era baixa e Wilde nunca tinha olhado para mulheres baixas. Tinha o cabelo preto, com um brilho seboso, coisa que Wilde odiava, mas, de perto, ele pode sentir o embriagador cheiro do shampoo dela. Tudo era uma grande casualidade, fazia anos que não entrava na cozinha. E nunca na sua vida tinha parado para observar um serviçal, ainda que, agora, sorrindo sem perceber, perguntava-se por que lavar a louça não podia ser considerado uma obra de arte. Os artistas plásticos não executavam performances da vida cotidiana em prestigiosos museus modernos?

Liliana movia os braços com uma graça que os robôs nunca alcançariam. Seus peitos, que pareciam feitos para alimentar um grande amor, mantinham-se firmes, alheios ao vaivém da tarefa. Seu pequeno corpo, a firmeza das coxas, os finos pés calçando havaianas de cor laranja levaram Wilde a esse instante em que se acredita com firmeza que toda a paixão que se poderá sentir alguma vez na vida está contida numa pessoa que se encontra a centímetros de distância. E fez, então, um comentário que lhe pareceu bobo e outro em seguida, para emendar, que lhe pareceu mais bobo ainda, e Liliana, sem saber como responder a um vampiro, se séria ou sorrindo, cortou-se um dedo com faca que estava ensaboando.

Wilde, de imediato, apertou o sangramento com um pano, levou Liliana tomada pelo dedo até o armário dos remédios, (teve a certeza de que a amava) e, ao tirar o pano para colocar o band-aid, sentiu que suas mãos eram suaves como um cisne -ainda que jamais tivesse tocado um cisne-, enterneceu-se porque seu dedo era muito pequeno e o curativo dava quase duas voltas, pediu desculpas sem motivo, coisa que ela achou lindo, e rolou um beijo e outro e outro.

Casaram-se.


Viveram felizes na indolência luxuosa, ou tédio florido, ou constante satisfação de todos os apetites. Só tiveram que ajustar minimamente suas crenças religiosas. Os vampiros acreditavam que o espírito de Deus se misturara entre os homens para trazer uma lição redentora. Assim, para eles, Jesus era a demonstração de que, em pouco mais de 30 anos, era possível ir de um presépio ao posto mais elevado que um ser humano podia almejar: ser Deus. Viam a história como um “insuperável exemplo de superação” e um testemunho do caráter divino da meritocracia.

Na terra de Liliana, o Cone Sul, também acreditavam no mesmo deus feito homem, mas resgatavam com fixação doentia o ato de magnífica humildade de ter descido até nós e a resignação com que suportara o sofrimento da Via Dolorosa e no Calvário. Assim, viviam culpados, por sentir-se a causa da dor de Jesus e achavam que sofrer como ele era bom e natural.

Como em toda história de amor, nossos amantes encontraram-se no ponto de equilíbrio. Wilde passou a dar um pouco mais de valor ao altruísmo, a acreditar na bondade natural das pessoas. Perdeu o lugar entre os primeiros cem, como era de esperar, mas conservou uma fortuna como para que vivessem sem trabalhar umas quinze gerações de descendentes.

Liliana abriu espaço para outras virtudes, que não só a culpa e a resignação, porque o novo estilo de vida fazia com que se sentisse mais jovem e imortal a cada dia que passava. Aprendera muitas palavras em outras línguas, a maioria nomes de vitaminas e sucos regeneradores, e convenceu o marido de que não havia nada mais confortável do que ser assistidos por robôs. O último que ela comprara, inclusive, respondia complexas questões existenciais como o melhor dos psicólogos e montava shows de stand up dignos dos melhores comediantes.

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